sábado, dezembro 03, 2005 11:11 PM

Dos diálogos incompletos I

por Ênio Vital

- Aprendi a lição de encher a lingüiça da vida quando me deparei com a minha imagem no espelho, não acreditei no que vi! Caí e comecei a socar o chão. Nunca quis ser um cara legal e nem pedia para acordar assim, serelepe e de sorriso no rosto. Só pedia um açúcar no chá, apesar da insistência, ninguém ouvia. Acreditava no amanhã, entretanto não muda.
- É, eu demorei um pouco menos para perceber. Não recrimino, minha sensação é a mesma.
- Acordar, correria, condução, correria, trabalhar, correria, comer, correria, trabalhar, correria, condução, correria, chegar em casa. Deveria tentar minha sorte, isso sim, oito de copas e tudo ou nada.
- Ah, já estou em outro nível, passei deste teu, já sofro daqueles sentimentos bucólicos de ostracismo, da minha cidadezinha, de passar na praça, de fonte ligada, tudo bonito, tudo bem conservado, nenhuma pixação, a fonte ser o centro da praça, todos passando por ela para cortar caminho, todos se encontrando ali, todos vêem ela. Uma adoração cotidiana a algo submisso aos olhos. Sinto falta.
- É, sua fuga já é realista, a minha ainda é só surreal.
- Certamente! Questão de tempo e você também terá sua fuga real, não nessas de jogos, bebidas, drogas ou o que seja.
- Ultimamente, me sinto tão egocêntrico, tento controlar!
- Você deveria arranjar alguém, isso sim.
- Não gostaria de arrumar mais um problema para minha cabeça.
- Às vezes, ajuda a desacelerar.
- Comigo, não desaceleraria, aconteceria o sentido inverso, como se me dessem uma bicicleta sem breques e eu descesse a ladeira pedalando com todas as minhas forças.
- Poxa, mas assim, você vai ficar ranzinza com a metade do tempo. Vai acabar resumindo toda sua vida em um dia.
- Talvez.
- Talvez? Você deveria começar a parar com essa indecisão! A vida foi feita de escolhas, apesar de dois terços destas nem serem importantes ou relevantes.
- Com certeza, mas essa vida é uma dor sem fim e você ta cansado de saber!
- Isso é entranha negativa.
- Dê o nome que quiser.
- Corrijo-me, você conseguirá ficar ranzinza com um décimo do tempo que levaria para ficar.
- Não tenho culpa.
- Culpa? Ninguém tem, agora, manifestar isso a torto e a direito é o que você disse, uma encheção de lingüiça com sua vida.
- Eu procuro consolo em algo.
- Para mim, você tem frescura demais.
- Vá, vá.
- Então, vou passar um endereço de um certo hospital...
- ...hey, meu mal não é psiquiátrico.
- Não acabei de falar, o hospital ao qual me refiro possui um programa de voluntários e é de crianças com Aids e câncer, tenho certeza que elas adorariam se consolar em algo e só retribuiriam sorriso mais sincero e puro.
- Não sei, agradeço o zelo. Minha estação chegou, preciso ir, bom final de semana.
- Bom final de semana.
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